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9.10.2012

A OUTRA PRAIA / CAPÍTULO UM


- Quem é?

No diapositivo, aparecia uma mulher de uns quarenta e cinco anos; tingida de louro, com olhos de quem sai em viagem pela primeira vez. Olhava para a câmara. Uma de suas mãos agarrava uma tábua de passar roupa; a outra estirava as pernas de um par de calças. O quarto era pintado de verde.

As calças eram do homem gordo. Saía muito alto nas fotos (talvez fosse realmente alto), e lhe agradavam os cinturões de grandes fivelas douradas como o do slide anterior. Os espectadores já sabiam que o homem tinha um Renault Dauphine, uma testa que se alargava na calvície e uma carteira cheia de dólares, da qual a mulher tingida de loiro tinha obtido vários primeiros planos.

- Como se chamam? – perguntou Antonio.

- Cacho e a tia Alicia.

- De verdade?

- Pusemos assim.

O diapositivo seguinte mostrava-os juntos e com as cabeças recortadas. O cenário era uma praia. Deveriam ter colocado a câmara no automático sobre o teto do Renault. Faziam um esforço para entrar no quadro, sorrindo como crianças. Haviam tirado as camisetas; o homem tinha um pelo denso no peito, que lhe chegava até os ombros; a mulher, uns seios pequenos sustentados por um sutiã vermelho. Uma margaridinha de plástico unia os dois triângulos do sutiã.

- Não há jeito de saber como se chamam – acrescentou Zopi.

Pareciam felizes dentro de sua viagem, ao menos mais felizes do que as quatro pessoas que olhavam passar os slides e comiam bolachinhas com queijo creme: Antonio, Marta, Sara e Zopi.

- Não percam esta – disse Sara, a esposa, de Antonio, uma morena mirrada com cara de sono. Apontou para a tela – É nossa foto favorita.

O Renault Dauphine estava parado no meio do caminho em um bosque. Os troncos quase encostavam no carro. O caminho estava coberto de folhas de pinheiro. O casal havia descido do carro; o homem posava parado detrás da porta aberta do condutor. Apoiava um cotovelo sobre o teto e o outro no canto da porta. Unia suas mãos à altura do peito, tapando uma medalha que logo se veria no slide seguinte. A medalha pendia de seu pescoço por uma grossa corrente dourada.

- Tem sandálias Adidas – disse Zopi.

O homem estava muito erguido, como se exagerasse sua grande altura. Cruzava a perna esquerda sobre a direita e dobrava uma sandália contra as folhas de pinheiro. As pernas também eram peludas. Estava relaxado. Mais relaxado do que os quatro que o olhavam incansavelmente, enquanto comiam as bolachinhas. Quando Sara quis passar adiante o diapositivo, Zopi lhe pediu que o deixasse mais tempo.

- Já não se conseguem mais estas sandálias. – completou.

- Será Cariló? – perguntou Marta, a mulher de Antonio.

- Não.

Sara fez uma careta com seu lábio inferior, como que reafirmando o pouco que sabiam. Soou a campainha. Ela levantou para atender.

- É a pizza – disse, voltando do porteiro eletrônico. Trazia uma nota dobrada na mão e uma moeda para a gorjeta. – Eu desço.

Quando entrou outra vez na sala de jantar, seu marido havia passado adiante o diapositivo. Agora havia um morro verde em um céu cinzento; Sara sabia que esta era a primeira de uma larga série de paisagens. Zopi passou várias rapidamente.

- É o Brasil, vêem? – se deteve num cartaz escrito em português – Curitiba, ou algo assim.

Em quase todas as fotos aparecia um dos dois. Ela sorria mais, porque tinha a dentadura inteira. Ele a enquadrava sempre no meio, às vezes não fazia foco ou movia a câmara. Invariavelmente, lhe cortava a coroa dos cabelos loiros.

Sara levou à mesa guardanapos de papel e garrafas. Abriu as caixas com as pizzas. Serviu as porções sem olhar para a tela.

- Esta que vem é a minha favorita especial – disse Zopi, para diferenciá-la da favorita de ambos.

Espiava as imagens no carrossel do projetor, levantando-as do carretel antes que fossem projetadas. -  Imperdível - agregou.

O homem estava sentado. A pança lhe saía como uma bola maciça, desde o elástico do slip. Tinha cara de recém acordado, ainda que já tivesse pendurado o medalhão. Sobre uma mesinha baixa havia um copo e uma media luna mordida. O sol que refletia no medalhão impedia de ver a inscrição. Zopi disse:

- “Campeão de natação. Colégio San José de Moron, quinto ano B, turno da tarde.” “Não vou tirá-la nunca mais´, ele prometeu ao seu treinador. Cacho está no mundo para cumprir sua promessa.

- Se é que está.  - acrescentou Antonio, com um sorriso.

Para Zopi e sua mulher, os donos da casa, essa era a primeira vez que Antonio sorria ao longo da noite. Para Marta, a primeira vez ao longo do mês.

Zopi fez um sinal com as mãos, como se afastasse a idéia da morte. Sara disse que a pizza estava riquíssima e ia esfriar. Havia de cebolas e de presunto e pimentões. Serviu-se de Bidu Cola e ofereceu à Marta.

- Nesta casa também não tomam Coca? -  perguntou Antonio.

Sara olhou para seu marido e repetiu a careta com o lábio.  Zopi sorriu, acariciou o pescoço de sua esposa e respondeu negativamente, como se não soubesse do que estavam falando ou não lhe importasse. Colocou o projetor no automático. Eram centenas de fotos.

- Duas maletas cheias. - explicou.

Sara havia comprado a primeira por cinco pesos numa feira de Pompeya. Tinha ido buscar uma lâmpada de três cones como a que aparecia no filme Se Meu Apartamento Falasse. Uma amiga havia conseguido lá este tipo de lâmpada. A lâmpada não havia. Quando voltou para casa com os slides,  Zopi lhe  jogou na cara que havia comprado algo inútil e tonto. A quem poderiam interessar as fotos de viagem de dois desconhecidos? Já era bastante insuportável olhar as de um só.

Desde então já as haviam passado mais de dez vezes. Havia algo perverso em compartir esta viagem com aquele casal. À paixão de Cacho por manter o carro radiante correspondia à obsessão de Alicia pela roupa extremamente bem passada. Fazia friso até nos jeans. Haviam descoberto que Alicia sempre entrava na água, houvesse sol ou não. Ele jamais o fazia. Sabiam que Alicia se levantava mais cedo que Cacho: havia várias fotos dele se espreguiçando ou tirando as remelas dos olhos. Ela preferia as cores claras e os tecidos salpicados de lunares ou flores. Ele, as listras verticais e o negro.

- Porque tem complexo de gordo – disse Sara.

Antonio, que era fotógrafo, fez o comentário de que ela era melhor que ele na hora de apertar o disparador: media a distância, atentava à luz, abria corretamente o diafragma, compunha o quadro e provavelmente fazia uma marca na areia para que ele se parasse neste lugar.

- Cacho aprendeu para a segunda maleta. – disse Sara.

Esta, haviam comprado um mês depois. A amiga lhe havia avisado que no Exército da Salvação havia visto uma lâmpada de pé muito parecida com a do filme. A lâmpada tinha cinco pantalhas cônicas. “Te apressa”, lhe havia dito. Ela se trocou e foi. Um cone era amarelo, outro verde, outro vermelho, outro azul e o último alaranjado. O vendedor, um tartamudo intratável vestindo um macacão, desmontou a lâmpada para que entrasse num táxi. Os cones verde e alaranjado eram postiços. Sara se arrependeu: os agregados não lhe agradavam. O vendedor protestou. Deixou o pé da lâmpada sobre uma maleta igual à que Sara havia comprado na vez anterior.

- Que tem? – perguntou.

- Slides. – disse ele, dispondo-se a ler o jornal.

Sara suspeitou que esta maleta ia custar-lhe mais. Discutiu o preço. Insistiu que era igual em tamanho a uma maleta anterior que havia comprado em outra feira, e que havia lhe custado cinco pesos. O homem não tinha ganas de vender-lhe nada.

- Estou lhe tirando um incômodo. Quem pode querer estes slides?

- Os donos. – respondeu o vendedor, alçando de ombros. – Os parentes dos donos.

“Eu não sou nenhuma das duas coisas”, esteve a ponto de dizer Sara, mas sentiu que não valia a pena. Como explicar-lhe o que haviam desfrutado inventando a vida para estes dois desconhecidos?

Quando avisou  Zopi por telefone, ele deixou de trabalhar. Estava ansioso por saber como seguia esta viagem. Dirigiu tão rápido até sua casa que quase bateu o carro. Sara já havia servido a mesa. O projetor estava entre a saladeira e a garrafa de vinho.

- Cacho aprende a fotografar, sim, mas as novas fotos não são interessantes – disse Sara.

- Há muito verde; são talvez mais...artísticas. Além disso, repetem as roupas. E ele já tem vontade de voltar para casa. – acrescentou Zopi.

- Provavelmente tenha saudade dos filhos. – disse Marta.

- Como sabes que tem filhos? – disse Sara.

- Tem? – perguntou Antonio.

- Mais adiante aparece uma mão sustentando um leque com fotos de crianças – Zopi começou a explicar – Dois meninos e uma menina. A mão é de Cacho; as fotos estão amassadinhas, como que tiradas da carteira. Não se pode saber quem é o mais velho dos três, porque nas fotos todos têm entre quatro e cinco anos. Como te deste conta, Marta?

Ela não pode responder porque estava mastigando um pedaço de fainá. Antonio disse:

- A maioria dos casais, a uma certa idade, já tem filhos.

Eles tinham uma filha: Victoria, de vinte anos. Zopi e Sara tinham uma menina de três anos e um garoto de seis.

- Volta para a anterior. – pediu Antonio.

Zopi apertou o controle remoto do projetor.

- Esta foto está muito bem tirada. Olha que nitidez. E o cachorrinho...

- Lhe dá um toque, não? Um algo... Esta do cachorro é uma série bastante divertida – disse Sara.

- Há uma melhor, não? – perguntou Zopi, olhando-a.

- Mais adiante.

- Olhem a luz sobre a cara... bem – seguiu demarcando Antonio – Perfeitamente graduada. Além disso, até conseguiu deixar bonito o gordo, não?

- O gordo é bonito – disse Sara, fazendo-se de ofendida.

- Meio banhento, ele, com este medalhão no peito... – Zopi se mostrou ciumento.

- Tu és mais bonito – disse ela, pelo que recebeu um beijo nos lábios – mas ele tem seu charme.

- Boas costas – agregou Marta –, bom lombo.

- Carne de exportação – disse Zopi – A tia Alicia também está muito comível.

- Eu não disse comível, tu que incluíste isso. – se defendeu Marta.

- Disseste que tinha bom lombo. – recordou Zopi.

- É tão masculino, com todo este pelo no peito, tipo Sandro... – intrometeu-se Sara, para defender sua amiga – Se não tivesse Zopi, eu podia ficar com ele.

Todos fizeram silêncio.

- O gordo deve ser um tigre. Pelos sorrisos da tia, digo.

A mulher mostrava sua dentadura. Atrás havia uma estátua de um menino ajoelhado. O cachorro lambia o rosto da mulher. O homem não havia decidido se tirava fora o cachorro ou a estátua, razão pela qual as duas situações haviam saído cortadas.

- Teria que se ver se ainda vivem, não? – insistiu Antonio.

Marta serviu-se de refrigerante.

- Deixa que vivam ... Olha como estão felizes.

- Bem transados e descansadinhos – acrescentou Sara.

- E bem comidos! – disse Zopi, depois de passar o diapositivo. – Olha o Cacho preparando o assado. Morcilhas, vazio, isto... bom, não se vê bem.

- Deve ser uma moela – disse Marta.

- Ou o cérebro do cachorro. Vejam, aqui está a pica do cachorro... – seguiu explicando Zopi.

- É uma salsicha – retrucou Sara.

- Ah, certo! Olha só... pensei que era, assim, uma pica...

Ela o golpeou carinhosamente.

- Pela cor rosada que tem o filme, parecem as revelações de antes de 78 – disse Antonio. Para o Mundial, a Kodak importou para o país um novo químico que evitava este envelhecimento prematuro das cores. Vêem que os amarelos e os verdes estão quase iguais?

- Sim.

- É por isso. Se recordam dos filmes do início da ditadura? Tinham o mesmo problema técnico.

Zopi voltou a colocar o projetor no automático e aumentou a velocidade. Havia começado o segundo turno das fotos, as que Sara chamava de artísticas. As fotos mostravam cardos, pedras, flores, árvores, nuvens, pasto, espuma. Era como se tivessem cansado de fotografar-se entre si e começassem a buscar ao redor algo que valesse a pena enquadrar. As imagens passaram rapidamente, até chegar à tela em branco. Sara trocou o carrossel por outro, e guardou o que haviam visto.

- Em alguma parte aparecia o ano, não, amor?

- Sim – respondeu Zopi  - Em um cartaz novinho, de um projeto habitacional.

- 1977?

- 76.

Antonio afirmou com a cabeça e completou:

- É capaz que na volta os milicos os tenham ´limpado”.

Zopi deixou sobre seu prato a borda mordida da última porção de pizza.

- Deixa-me comer em paz. – disse. Depois o imitou - `É capaz que os milicos os tenham limpado.” Que queres? Que choremos?

Antonio fez uma cara de resignação. Disse:

- Tu pensas que uns tipos como estes, que tiraram cem fotos de umas férias baratas, doariam suas lembranças ao Exército da Salvação? Só mortos.

- Cem, dizes? Trezentas e sessenta e sete... – afirmou Sara.

- Mais ainda a meu favor. Olha as caras que têm, o carro, como se vestem, esta medalha ao valor por terem entrado na classe média...

- Quem sabe se foram do país – delimitou Marta – E não iam ficar carregando maletas com slides. Deixaram de presente para um parente que as vendeu por uns trocados.

Zopi e Sara assentiram. Preferiam acreditar na hipótese da viagem, ou pensar que Cacho e a tia Alicia tinham precisado mudar para um apartamento menor, onde não cabiam as bugigangas. Ou que se haviam separado.

- Sendo muito pessimistas, chegamos a acreditar que na segunda parte da viagem lhes haviam roubado o Reno Dofin – disse Sara – Vêem que não sai mais e que ele está deprimido? Olhem seus olhos... Não há uma foto melhor?

Zopi buscou, passando rápido, e voltou à foto anterior.

- Essa foi a máxima desgraça que chegamos a supor para eles. E nem sequer serve, porque no penúltimo slide aparece de novo o capô do Reno – completou Sara.

Coçou a cabeça, pensativa.

- Nos agradam muito assim, felizes... não, amor?

Zopi esvaziou seu copo de refrigerante e voltou a servir-se.

- Nós os queremos assim. – disse.

Para Antonio, no entanto, a perspectiva de que Cacho e Alicia já não existissem agregava às fotos um estranho valor. Iluminados pela luz do projetor, aqueles mortos haviam regressado à vida. Haviam aparecido. Antonio preferia pensar-se mais como um ressuscitador do que como o voyeur de um passado que o próprio dono havia descartado por desinteresse.

Zopi se deteve numa foto em que Cacho lia o jornal.

- Conseguem ver a data?

- Põe mais foco.

- Assim?

- Não se vê.

- Mas não pode. A tomada está ruim.

- Deixa eu ver? – perguntou  Antonio.

Inclinou-se sobre o projetor. Girou o canhão milimetricamente para a direita e logo para a esquerda. Moveu a lente até que o periódico ficasse medianamente enfocado. O ano do jornal não se conseguia ler.

- “Seis de janeiro de...”

- E não há mais dados – assinalou Zopi.

Antonio soltou o canhão do projetor. A tela esgazeou os limites do homem sentado. Zopi não passou o diapositivo até que o foco voltou.

- Desejo sinceramente que Cacho e a tia estejam mais velhos que antes – mentiu Antonio, fazendo um gesto à Marta. Pôs-se de pé.

- Oxalá – remarcou Zopi.

- Não tomam um café? Sobremesa não tem, mas café... – convidou Sara.

- A falta de café nesta casa é motivo de divórcio – acrescentou Zopi.

- Amanhã tenho que levantar cedo – disse Antonio –, e estou dormindo pouco...

- Quando precisa revelar duas noites seguidas, anda toda a semana grogue – agregou Marta – E quanto tempo faz que vens neste dá-lhe que dá-lhe todas as noites?

- Dez dias.

- E quando..? – Zopi fez um gesto à Marta como que perguntando “quando transam?”

Sara o golpeou com os quadris para que não fosse grosseiro. Marta enrubesceu.

- No quarto escuro. – disse.

Abraçou e beijou seu marido na bochecha. Quem houvesse visto seus olhos poderia afirmar que estava orgulhosa de Antonio. Mas ele pouco se importou com isso. Sara olhou para Zopi e lhe disse:

- Quem sabe trocas as luminárias do quarto por umas vermelhas, hein?

- Sim, amor – respondeu ele.

Marta e Antonio saíram. Na rua fazia frio. Subiram no carro. Quase não falaram em todo o trajeto até sua casa, que era bastante distante do centro. Num semáforo, Marta tentou acariciar-lhe a mão. Ele recebeu a carícia com indiferença; depois, buscou soltar-se para poder fazer a marcha e arrancar.

Chegaram às duas da manhã. Victoria ainda não havia voltado das festas. Na parede do living estavam penduradas as fotos de Victoria que Marta havia emoldurado. Não eram boas, mas lhe agradavam. Sua filha na bicicleta, correndo, pulando corda. Victoria, segundo Antonio, era difícil de fotografar, apesar de bonita que era. Bastava apontar-lhe a objetiva para que a beleza se apagasse.

Marta voltou a cabeça buscando os olhos de Antonio. Ele soltou a maçaneta e desviou o olhar para um canto onde havia um porta-sombrinhas e um urso panda de pelúcia. Ela caminhou os poucos passos que a separavam de seu marido e o abraçou. Ali estava Marta para amá-lo, sustentá-lo e cuidá-lo. Não o alcançava a infinita promessa deste abraço? Antonio se liberou suavemente para inclinar-se e apagar a luz.

Marta foi até a cozinha e colocou uma chaleira sobre o fogão. Jogou um punhado de grãos de café no moedor.

- Fecha a porta. – disse ele.

- Por que?

- Pelo barulho.

- E a quem incomodamos?

- Aos vizinhos.

Ela não lhe deu atenção e ligou o moedor. Antonio se levantou e fechou a porta que separava o living dos quartos. Logo fechou a da cozinha. Nem a ruído do moedor nem o apito da cafeteira lhe pareciam conhecidos. Pareciam barulhos recentes, acabados de inventar.

- Faz quanto tempo que temos este moedor?

- Foi um presente de casamento. – disse ela.

- E essa chaleira que apita?

- Comprei outro dia no supermercado.

A xícara de café tinha espuma até a borda. Antonio não gostava que o café tivesse espuma.

- Está sem açúcar. – disse.

- Aqui está. – disse ela, passando-lhe o açucareiro e uma colher.

Ele serviu-se de um torrão de açúcar, provou e acabou dando um largo gole. Assentiu com a cabeça. Ela apoiou as mãos sobre a mesa.

- Não queres que falemos?

- Não. – disse ele.

Ela baixou o olhar. Deu-lhe as costas, para que ele não notasse que lhe tremiam os lábios.

- Eu te quero muito, e também à Vicki – disse Antonio – Posso sentir isso – acentuou a palavra para que não houvesse dúvida – Mas algo está acontecendo comigo. Parece que estou sobrando...

- Não entendo, amor – disse ela, e se sentou.

- É assim. É a impressão que tenho...

- Como vais sobrar na tua própria casa. Ei, olha para mim quando falo contigo.

Antonio levantou o olhar.

- Sou Marta, tua esposa...

Ele concordou em silêncio. Os olhos dela estavam brilhantes. Havia levantado do assento e inclinado o corpo em direção ao rosto de Antonio. 

- Já sei – disse ele.

- Preciso de ti ao meu lado. Como é que vais estar sobrando em tua casa? Que idéias são essas!...

Antonio desviava o olhar e ela o buscava com os olhos.

- Amanhã vais ao psicólogo?

- Sim.

- Olha que tens que ir, hein?

- Claro.

Esperou que ele acrescentasse algo. Perguntou.

- E pensas em tirar fotos, também?

- Vou levar a câmara.

Antonio a olhou. Os olhos dela não acreditavam nele.

- Pelas dúvidas... – disse ele.

Marta tomou seu café. Uma chave deu volta na fechadura. Antonio alargou um braço e abriu um pouco a porta da cozinha. Uma garota morena muito parecida à Marta tentou esgueirar-se sigilosamente pelo corredor que levava aos quartos.

- Eh! – gritou sua mãe.

- Ah! – disse ela, assomando-se – Estavam acordados? Aconteceu algo?

- Não. – disse Antonio.

Victoria sorriu como nunca o fazia frente a uma câmara, para depois começar a contar à mãe, aos gritos:

- Sabes com quem está saindo a Amanda?

Amanda era sua amiga íntima.

- Fernando – disse Marta.

- Não.

- Xavier.

- Frio.

- Marce.

- Geladíssima.

- Não sei.

- O irmão de Fernando!

- Não é muito velho?

- Tem trinta e dois. Amanda faz vinte em agosto. Adivinha o que ele lhe deu de presente a primeira vez em que a convidou para sair.

- Me parece um rapaz muito velho... – Marta olhou para Antonio, esperando que dissesse algo. Antonio permaneceu calado.

- Adivinha! – disse Victoria.

- Não me agrada que saiam com rapazes tão mais velhos. Nem ao teu pai – insistiu Marta.

- Um ramo de rosas enorme! Não é de se apaixonar?

Marta voltou a olhar para Antonio. Ele disse:

- Sim, de se apavorar.

Victoria deu em Antonio um entusiasmado beijo na bochecha, como se não houvesse percebido o jogo de palavras, e saiu correndo da cozinha. Sua mãe apareceu no corredor.

- E quem te trouxe? – perguntou.

- Fer.

- De carro?

- Claro, no que ia ser?

- Este garoto já tem carteira?

- Faz tempo, mamãe.

Marta voltou à sua cadeira. Antonio disse, simplesmente.

- Poderíamos dizer a ele que entrasse, alguma vez.

- A Fer?

- Este que ela nomeia.

Marta atirou o resto de seu café na pia sem se colocar de pé.

- E quem tem que dizer isso? Eu?

- Tu és a mãe, ora.

- Que entre o seu amigo na casa, queres dizer?

- Para que nos conheça, ao menos. Para ver como ele é.

Marta resfolegou, angustiada.

- Só o que importa é que vás ao psicólogo – disse, mudando repentinamente de assunto.

- Não me parece má idéia saber com quem anda a Vicki.

- Não te parece má idéia de que eu me inteire com quem ela anda... E eu já me inteirei. Vais faltar como da última vez, não?

- A outra vez não faltei. O psicólogo já havia saído.

- Porque chegaste tarde.

- Não.

- Me contou a secretária do doutor.

Marta cruzou os braços e se inclinou  sobre eles.

- Desta vez vou chegar a tempo. – disse Antonio.

Marta escondeu o rosto com as mãos, como que se refugiando na escuridão.

- Queres ir embora, não?

- De casa?

- Sim.

- Não. – respondeu Antonio, com firmeza.

- Mas vais querer...

Ele se levantou para despejar o que sobrava do café frio na pia.

- Há outra? – perguntou Marta.

- Não.

- Mentiroso.

- Te digo a verdade.

- Jura para mim.

- Já te jurei ontem.

- Jura de novo.

- Te juro.

O olhar de Antonio estava seco. Victoria apareceu descalça e de camisola.

- E o xampu de calêndula?

- Vais tomar banho agora? – protestou Antonio – São três horas.

Victoria olhou a nuca de sua mãe. Depois olhou para ele, e se arrependeu de haver voltado à cozinha.

- Estou com cheiro de cigarro no cabelo.

- Olha no nosso banheiro, vê se está lá. – disse Marta.

Victoria saiu.

Antonio levou sua mão à cabeça da esposa para acariciá-la. Disse, num sussurro, que não se preocupasse, que tudo ia passar. Marta não levantou a cabeça, nem sequer quando lhe perguntou “o que queres?” depois de um instante de silêncio.

Ele não soube o que responder. 


Gustavo Nielsen nació en Buenos Aires, en 1962. Es arquitecto y escritor. Como arquitecto ha realizado obras en Capital, Buenos Aires, Córdoba, San Luis y Montevideo. Desde 2008 comparte el Galpón Estudio en el barrio de Chacarita junto a los arquitectos Ramiro Gallardo y Max Zolkwer. Ha ganado el Tercer Premio para el Parque Lineal del Sur (asociado a Max Zolkwer), el Primer Premio para el Oasis Urbano Magaldi Unamuno, Tercer Premio Cenotafio Las Heras y Mención en el Oasis Boedo (asociado a Max Zolkwer y Ramiro Gallardo), Mención en el MPAC (asociado a Sebastián Marsiglia), Mención en el Pabellón Frankfurt 2010 (asociado a Max Zolkwer y a Sebastián Marsiglia) y Primer Premio en el concurso internacional para el Monumento a las Víctimas del Holocausto Judío (también asociado a Sebastián Marsiglia). Escribe notas sobre ciudad y diseño en el suplemento Radar, de Página 12. Ha publicado “Playa quemada” (cuentos, Alfaguara), “ La flor azteca” (novela, Planeta), “El amor enfermo” (novela, Alfaguara), “Marvin”, (cuentos, Alfaguara, "Auschwitz" (novela, Alfaguara)y “Adiós, Bob” (cuentos, Klizkowsky Publisher) , “Playa quemada” (cuentos, Interzona), “La fe ciega” (cuentos, Páginas de Espuma, Madrid), “El corazón de Doli” (novela, El Ateneo) y “La otra playa” (novela, Premio Clarín Alfaguara 2010).

gesnil@gmail.com

EL AMOR ENFERMO / CAPÍTULO CUATRO
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